Se você escreve — seja como iniciante ou com experiência — com certeza já se deparou com a dúvida: qual o melhor tipo de narração para a minha história?
A clássica questão: “Quem vai contar isso?”
O narrador é uma peça central da narrativa. Sua escolha pode transformar completamente a forma como o leitor se conecta com a trama, os personagens e o universo criado.
Por isso, decidir entre narrador em primeira, segunda ou terceira pessoa não é uma tarefa tão simples quanto parece. Essa escolha vai além da técnica — ela define a alma do texto.
Neste artigo, vamos explorar os principais pontos sobre cada tipo de narrador e te ajudar a entender qual ponto de vista narrativo melhor se encaixa no seu projeto.
Acompanhe e descubra qual voz deve guiar sua história.
Narrador em primeira pessoa: proximidade e subjetividade
Antes de tudo, é importante lembrar que todos os tipos de narração têm seus pontos fortes e limitações. Por isso, a melhor forma de decidir qual utilizar na sua história é analisando o que você quer transmitir — e como deseja que o leitor viva essa experiência.
A narração em primeira pessoa é uma das mais utilizadas, especialmente por sua capacidade de criar proximidade emocional entre leitor e personagem.
Quando uma história é contada por quem a vive — com seus sentimentos, pensamentos e percepções — ela tende a se tornar mais pessoal, mais íntima.
O leitor mergulha na mente do narrador, sente com ele, descobre com ele. É como estar “na pele” do próprio personagem.
Esse tipo de narração é ideal quando você quer explorar profundamente o mundo interno do personagem: suas reações, seus dilemas, seus traumas e emoções. É perfeita para histórias que exigem um olhar subjetivo, emocional ou confessional.

Mas, como em toda escolha narrativa, nem tudo são flores.
Narrar em primeira pessoa implica aceitar que seu narrador não sabe de tudo. Ele está limitado à própria visão, ao que vivencia diretamente, e isso impõe desafios importantes para a trama.
Por exemplo, se o leitor precisa saber de algo que o protagonista ainda não sabe, fica muito mais difícil inserir essa informação de forma natural.
E aí mora o risco de cair na famosa “conveniência de roteiro” — quando o personagem descobre algo de forma forçada, apenas porque o autor precisa que o leitor saiba.
Se você opta por esse tipo de narração, é importante compreender:
➡ ️ Seu narrador não controla a história por completo.
➡ ️ O leitor vai descobrir o enredo no mesmo ritmo do personagem.
➡ ️ O suspense e a revelação ganham uma camada de intensidade — mas a construção exige cuidado.
Exemplos e indicações
Para entender melhor o impacto e o uso da narração em primeira pessoa, a leitura de boas referências é fundamental. Aqui vão alguns exemplos marcantes:
- Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis: Narrador-personagem irônico que conta sua história após a morte, rompendo com convenções e desafiando o leitor o tempo todo.
- O Morro dos Ventos Uivantes – Emily Brontë: Narrado por Nelly Dean, uma personagem secundária que testemunha os eventos — um exemplo interessante de narração subjetiva e parcial.
- É Assim que Acaba – Colleen Hoover: Narrado em tom íntimo e emocional por Lily, com trechos em forma de diário, reforçando o vínculo direto com o leitor.
Esse tipo de narração funciona muito bem em gêneros como dramas íntimos, Young Adult, romances introspectivos e fantasias focadas no desenvolvimento de personagens.
Mas claro — isso não é uma regra.
E por fim, lembre-se:
➡ ️ Todo narrador-personagem narra em primeira pessoa.
➡ ️ Mas nem toda narração em primeira pessoa é feita por um protagonista.
Pode ser um observador, um coadjuvante ou até um narrador parcial — tudo depende do efeito que você deseja criar.
Narrador em terceira pessoa: o mais versátil da ficção
Outro estilo muito popular — e muitas vezes mais utilizado do que a primeira pessoa — é o narrador em terceira pessoa.
Essa forma de narração é considerada a mais versátil da ficção. Ela se adapta com facilidade a diferentes gêneros, estilos e estruturas narrativas, oferecendo uma amplitude de possibilidades para o autor.
Mas antes de mergulhar nas vantagens, é importante entender que existem diferentes formas de narrar em terceira pessoa. E o primeiro passo é distinguir dois modelos principais: o narrador limitado e o narrador onisciente.
Terceira Pessoa Limitada
Aqui, o narrador acompanha de perto um único personagem — geralmente o protagonista — revelando seus pensamentos, sentimentos e percepções. Os demais personagens são vistos apenas de fora.
Essa forma oferece mais equilíbrio do que a primeira pessoa, já que o narrador tem um certo distanciamento, mas ainda mantém a intimidade com o ponto de vista central.

Narrador Onisciente
Já o narrador onisciente é aquele que sabe tudo sobre todos. Ele conhece a trama por completo — o passado, o futuro, os pensamentos mais íntimos dos personagens e até detalhes desconhecidos por eles mesmos.
Esse tipo de narrador pode se apresentar de três formas distintas:
- Onisciente Neutro: observa tudo com imparcialidade, sem interferir ou opinar. É como uma câmera que registra os fatos com clareza e distância.
- Onisciente Intruso: além de relatar, o narrador comenta, julga, reflete. Ele se dirige ao leitor, compartilha opiniões e às vezes até provoca.
- Onisciente Múltiplo: alterna entre a mente de vários personagens, mesmo dentro de uma mesma cena ou capítulo. Essa alternância dá mais complexidade à trama e à construção emocional.
A grande força da narração em terceira pessoa está justamente nessa flexibilidade.
Você pode explorar o íntimo de um personagem específico ou passear por diversas consciências, dando profundidade e ritmo ao enredo.
Exemplos e indicações
Como visto, a narração em terceira pessoa permite maior controle narrativo, melhor fluidez e a multiplicidade de vozes.
Não é atoa que é vista como a narração mais versátil da ficção.
A leitura de bons exemplos é sempre a melhor forma de compreender, na prática, como funciona cada estilo narrativo. Aqui vão alguns exemplos marcantes:
Terceira Pessoa Limitada
- Harry Potter (série) — J.K. Rowling: Narrado com foco quase exclusivo em Harry. Sabemos o que ele sente e pensa, mas não temos acesso direto à mente dos outros.
- Assassinato no Expresso do Oriente — Agatha Christie: Acompanhamos os passos de Hercule Poirot, mas os pensamentos dos outros personagens não são revelados diretamente.
Narrador Onisciente Neutro
- Ensaio sobre a Cegueira — José Saramago: O narrador relata os acontecimentos com distanciamento, sem interferências emocionais.
- O Conto da Aia — Margaret Atwood: Embora tenha trechos introspectivos, a narração frequentemente assume um tom descritivo e imparcial.
Narrador Onisciente Intruso
- Madame Bovary — Gustave Flaubert: O narrador comenta e analisa as ações de Emma com forte carga crítica e irônica.
- Quincas Borba — Machado de Assis: Com estilo sarcástico e filosófico, o narrador não apenas conta, mas comenta e reflete sobre as atitudes humanas.
Narrador Onisciente Múltiplo
- Vidas Secas — Graciliano Ramos: A narração passeia entre os pensamentos dos membros da família, incluindo até o cachorro Baleia — revelando múltiplas percepções da realidade árida.
- As Crônicas de Gelo e Fogo (série) — George R. R. Martin: Cada capítulo foca em um personagem diferente, permitindo ao leitor acessar diversas visões da mesma trama.
Com tantas possibilidades, a narração em terceira pessoa oferece liberdade criativa e riqueza de detalhes — o que explica por que é a mais adotada na ficção contemporânea.
Se você busca controle narrativo, dinamismo de vozes e variação de foco, esse é um excelente caminho a seguir.
Narrador em segunda pessoa: a escolha ousada
Se você quer inovar na forma como conta uma história, talvez já tenha cogitado usar o narrador em segunda pessoa. Esse estilo é, sem dúvida, o mais incomum — e também um dos mais ousados.
Aqui, a narrativa se constrói como se estivesse falando diretamente com o leitor:
“Você entra na sala. Seus olhos percorrem o ambiente. Algo está errado.”
Essa escolha cria um efeito de imersão intensa. O leitor não apenas observa a história — ele se sente dentro dela, como se estivesse vivendo os acontecimentos em tempo real.

É uma técnica poderosa para:
➡ ️ Causar impacto.
➡ ️ Provocar reflexão.
➡ ️ Criar um laço imediato.
Mas, como toda escolha ousada, ela vem com riscos.
A narração em segunda pessoa pode soar artificial se for mal dosada, especialmente em histórias longas. Ela exige equilíbrio para não parecer forçada, repetitiva ou cansativa.
Também pode limitar a identificação do leitor se ele não se enxergar na ação descrita.
Por isso, seu uso é mais comum em textos curtos, literatura experimental, poesia, jogos narrativos e até músicas, onde o impacto imediato vale mais do que a construção longa.
Exemplos e indicações
Apesar de raro na ficção tradicional, esse estilo aparece em diversas formas criativas. Aqui vão alguns exemplos interessantes:
- Se um viajante numa noite de inverno — Italo Calvino: Um clássico da literatura pós-moderna, onde o leitor é diretamente interpelado desde a primeira página.
- You — Caroline Kepnes: O thriller que inspirou a série da Netflix é narrado em segunda pessoa, mas com um toque sombrio, onde o narrador fala com a personagem.
- Choose Your Own Adventure (série) — diversos autores: Livros interativos infantis e juvenis que colocam o leitor como protagonista, fazendo escolhas que afetam o rumo da história.
Além disso, é comum ver esse tipo de narração em jogos narrativos e RPGs. Narradores em jogos de texto ou mesa geralmente utilizam a segunda pessoa para dar a sensação de presença ao jogador.
“Você atravessa a ponte. Uma sombra se move.”
No mais, a narração em segunda pessoa é amplamente utilizada em canções e poemas. É comum encontrar esse estilo em letras de música ou poesia, pois o “você” aproxima e intensifica a emoção da mensagem.
Se quiser experimentar esse tipo de narração, comece pequeno. Um conto, um texto poético, uma cena isolada. Quando bem utilizado, o narrador em segunda pessoa quebra a quarta parede e transforma o leitor em parte da história.
É desafiador, sim. Mas também inesquecível.
Como escolher o narrador certo para sua história?
Mesmo conhecendo os diferentes tipos de narração e tendo todos eles ao seu alcance, escolher o narrador ideal ainda pode ser uma das decisões mais desafiadoras na construção de uma história.
Como vimos ao longo deste artigo, o narrador tem o poder de moldar a experiência do leitor, influenciar o ritmo da narrativa e determinar o quanto de cada personagem será revelado.
Para facilitar esse processo, aqui vão algumas perguntas-chave que podem te orientar:
- Qual proximidade emocional quero criar com o leitor? Desejo que ele se sinta dentro da mente do personagem? Ou prefiro uma visão mais ampla e estratégica?
- Meu personagem sabe tudo o que precisa ser revelado? Se não, talvez um narrador onisciente seja mais adequado para manter o leitor informado sem quebrar a lógica da trama.
- Preciso mudar de ponto de vista ao longo da história? Se sim, narradores múltiplos ou uma terceira pessoa com foco alternado podem dar conta do recado.
No fim das contas, não existe uma única resposta certa. O narrador perfeito é aquele que melhor serve à história que você quer contar — e ao efeito que deseja provocar.
E se a dúvida ainda persistir, não tenha medo de experimentar. Escreva a mesma cena com diferentes narradores e observe como a narrativa muda.
Às vezes, a voz da história aparece justamente no meio do teste. Afinal, revisar o ponto de vista também faz parte da escrita!
A voz da sua história precisa ser escolhida com o coração e com técnica
Chegamos ao fim desta jornada, e agora você sabe: a escolha do narrador não é apenas uma decisão técnica, mas também uma questão de conexão com a história que você quer contar.
A voz narrativa é o fio que conduz o leitor do começo ao fim.
Ela define o tom, o ritmo e a intimidade da sua história. Por isso, escolher o narrador certo é uma etapa que merece atenção, escuta e sensibilidade.
Não tenha medo de experimentar. Teste possibilidades, troque o ponto de vista, reescreva uma cena de formas diferentes. Muitas vezes, a melhor escolha aparece na prática, quando você sente — mais do que entende — que aquela voz pertence à história.
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